Carta para a mãe de uma militante
22:06
Brasil,
31 de agosto de 2016.
Minha
querida mãe,
Eu
poderia começar essa carta perguntando se está tudo bem, mas devido à
conjuntura recente do nosso país, pode soar um pouco irônico tal
questionamento. Na democracia frágil em que construímos as histórias de nossas
vidas, sabíamos que o dia em que teríamos que lutar por nossos direitos
chegaria, hora ou outra.
De
certa forma, surge – a nossa frente – um espectro embaçado do que podem ser os
nossos dias a partir de agora. Não carregamos muitas certezas, mas visualizamos
complicações que podem ser um tanto que doloridas.
Lembro-me
da primeira vez que estudei sobre a Ditadura Militar. Eu tinha dez anos de
idade e uma vontade doida de saber mais sobre a vida. Lembro-me de chegar em
casa e perguntar para a senhora sobre como eram os tempos passados. Como a
excelente professora de História que é, disse que muita gente havia morrido nos
sombrios tempos ditatoriais, que muita gente tinha sofrido e que a vida de
muitas pessoas foi atravessada por uma dura realidade de violência e
cerceamento das liberdades.
Durante
muito tempo, achei que era uma realidade muito distante de nós, que era
passado, e que o que se foi permanece apenas nos livros de História. Mas eu fui
crescendo, e com todo o sentimento de justiça plantado em mim pela sua
educação, comecei a ver que nem tudo estava encaixado como aparentava.
Fui
educada para se indignar, para não se calar, para acreditar, para lutar. E eu
lhe agradeço de forma profunda por ter me conduzido a isso, mãe. Diante da
imensidão do universo, acabei com a certeza de dedicar minha existência para
colaborar com a superação de tantos desencaixes que encaramos ao levantar da
cama.
No
reconhecimento de nossos indivíduos enquanto mulheres, classe trabalhadora, estudantes
e brasileiros, como se aquietar diante do cenário político que encaramos? Como
ficar sentado em casa, de modo alheio aos ataques direto às populações
periféricas e as classes marginalizadas? Como aceitar as violências que
sofremos todos os dias? Se a injustiça prevalece em nossos meios, como não se
atentar a isso?
Dada
a toda construção do meu ser, acabei por me constituir enquanto militante. Se
existo, existo justamente para dar um significado aos meus dias além dos meus
desejos individuais. Existo para que meus sonhos sejam partilhados de forma
coletiva. Existo para ser uma peça nas mudanças que tanto se fazem necessárias.
Sei
que você sofre muito por essa minha concepção. Sei que acaba em casa, com
lágrimas nos olhos, com questionamentos infindáveis, com dores na alma, com
desesperos e confusões. Sei que você teme por mim. Teme pelas violências que
posso sofrer, teme pela minha exposição, teme pelos ataques ao meu ser, teme
por um futuro incerto.
Eu
vejo a sua dor, mãe. Se lhe escrevo essa carta, é para que entenda que as
coisas são bem maiores do que minha própria existência. Use sua fé inabalável para
pedir proteção a mim diante de tantas opressões possíveis.
Em
1976, em meio a ditadura, Belchior escreveu uma música, que depois foi cantada
de forma encantadora por Elis Regina, que diz muito sobre nossa relação: “Você
me pergunta pela minha paixão. Digo que estou encantada com uma nova invenção.
Eu vou ficar nesta cidade, não vou voltar pro sertão, pois vejo vir vindo no
vento cheiro de nova estação [...] Hoje eu sei que quem me deu a ideia de uma
nova consciência e juventude tá em casa, guardado por Deus”.
Seguirei
lutando, e se parte do meu coração é luta, uma parte muito maior abriga minha
família. Seguirei lutando, com o pensamento firme e com as lembranças do seu
riso, das suas crenças, do seu toque, do seu abraço, das lágrimas que
presenciei. Fui educada para questionar, descobrir e se refazer a cada instante
diante das necessidades da vida. A maior lição que poderia me passar foi dada:
Resistência. Todos os dias. O tempo todo. A tudo que é errado. Avante, mãe.
Lutemos.
Um abraço apertado de alguém que antes de ser
militante, é filha de uma mulher guerreira.
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