Uma sinfonia desordenada de furor e delicadeza
11:03
Não parecia, mas era uma terça-feira. Cheia de
equívocos, de complicações, de histórias mal rascunhadas. O calor infiltrava os
meus poros, ainda que o relógio marcasse quase três horas da manhã. Sentia uma
sensação entorpecente sob os meus braços, quase em um nível de alucinação.
A imaginação roubava espaço da realidade, marcada
pela forte presença dos dias que já eram lembranças, vezes carinhosas, vezes
atormentadoras. O semáforo que pouco sentido fazia naquele momento esverdeava
os quatro cantos da rua, quase como um rompante sobre a necessidade de avançar.
Como um manifesto silencioso que proclamava sobre como o tempo de seguir em
frente tinha chegado.
Rememoriei as desculpas esfarrapadas contadas para
a psicóloga há pouco mais de uma semana, em uma tentativa fajuta de esconder
todos os receios que eu não sentia a capacidade de enfrentar. O silêncio da
cidade era de um barulho tremendo, como se as ruas sussurrassem todas as vezes
que andei alcoolizada, tomada pelas tristezas mais estarrecedoras ou as paixões
mais perturbadoras.
Corria para não pensar, mas parecia que eu havia
deixado tanto de mim no chão que eu pisava, que cada brisa parecia me trazer
mais pensamentos. A racionalidade de encerrar um ciclo esbarrava em todos os
sentimentos despertos na solitude que parecia ter tomado uma caráter concreto
que eu não sabia bem da onde tinha saído.
A vida passa. Acho que é isso. Os dias escorrem
pelas nossas mãos, como a água gelada da cachoeira que tinha tocado a minha
pele em dias aleatórios, segurando toda a fragilidade de uma garota deprimida. O
cheiro da mata molhada, o calor do sol sobre meu corpo exposto rascunhavam a
sensação de felicidade em minha mente.
Respirei fundo, na tentativa de interiorizar todas
as memórias possíveis. Todos os sons, cheiros e toques depravados. Abria os
meus olhos sob a vontade de sentir as cores de todas as vezes em que vi o sol
nascer, tanto em uma sobriedade milimetricamente planejada, quanto em uma
embriaguez nada intencional. Era como aquele momento, antes da festa acabar,
quando a última música tá tocando e você não quer parar de dançar. É aquela
hora que o infinito invade o seu corpo e é como se o tempo parasse pra que você
apreciasse, num misto de furor e delicadeza, tudo o que você se tornou.
É sobre o inimaginável tomar forma de um jeito tão
inesperado que talvez só uma despedida, só o encerrar de um ciclo possa mostrar
o quanto você cresceu. Aquela corrida solitária em uma madrugada barata parecia
contar o que tinha sido a minha vida nos últimos anos. A parede de um prédio
gritava a declaração de uma amiga: você é uma utopia.
Passei pela varanda que abrigou o princípio das
minhas transformações. Parte de mim quis parar de correr, sentar na beira da
calçada e admirar o que tinha passado. Relembrar calmamente os dias que eu
fumei um cigarro olhando para o céu límpido, iluminado, em contrariedade a
todas as perturbações que eu sentia. Queria voltar no tempo e rabiscar no muro segredos
que eu havia descoberto nas minhas buscas por um grande talvez.
Meu corpo reivindicava as memórias da esquina onde
me prometeram cinquenta beijos antes do futuro chegar, dos bares que eu sentei,
das cachaças que bebi, das revoltas que conclamei num sentido heroico e juvenil.
Enquanto fechava os olhos, enxergava a confusão, o caos organizado, o terrorismo
programado, a resistência inesperada, a tinta que demarcava que eu tinha
passado por ali.
A vitrine refletia não só o meu eu tomado pelas reminiscências
da vida, mas os meus cabelos que tinham sido cortados e pintados, o batom
vermelho hora ou outra usado na tentativa de marcar posição, os olhos quase
fechados, ora por cansaço, ora por um riso indelineável. Quase um ateliê onde
eu tinha a liberdade de me pintar em tons de azul ou vermelho, de seis formas
diferentes, pra me fazer como deusa da minha própria sobrevivência.
Não era mais sobre prometer uma vida incrível para
que o universo entendesse o recado. Era sobre, finalmente, entender a potência
de cada laço desfeito e de cada vínculo concretizado. Para além dos amores,
dissabores, desacertos, eu finalmente entendia o que é que tinha sido. Enquanto
corria, enquanto me sentia dopada e fora da realidade, enquanto percorria o que
minha cabeça tinha sido capaz de guardar, a vida fez sentido e o recado soou
claro: é tempo de se despedir, de dizer adeus, deixar os créditos passarem como
num filme independente que quase ninguém viu. É hora de partir para uma nova
sinfonia desordenada.
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